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A mostrar mensagens de 2013

Poemacto

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. Falo, penso. Sonho sobre os tremendos ossos dos pés. É sempre outra coisa, uma só coisa coberta de nomes. E a morte passa de boca em boca com a leve saliva, com o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida. Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas. As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas. E às vezes estou na frente dos campos como se morresse; outras, como se agora somente eu pudesse acordar. Por vezes tudo se ilumina. Por vezes sangra e canta. Eu digo que ninguém se perdoa no tempo. Que a loucura tem espinhos como uma garganta. Eu digo: roda ao longe o outono, e o que é o outono? As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento. Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra. Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas. - Era uma casa – como direi? – absoluta. Eu jogo, eu juro. Era uma casinfância. Sei como era uma casa louca. Eu me

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É estranho como conhecemos os contornos de um corpo que nunca se tocou. A textura suave que se insinua. Um corpo que se move na minha mão como se dela sempre tivesse feito parte. Um sexto dedo. Afinal, a vantagem dos dedos é que sentem sem que se tenha de pensar neles. Sem que se tenham de pensar! Vieste ter comigo, levaste-me a passear e exigiste o que te prometera. Não foram necessárias palavras. Sabia ao que vinhas. Um toque leve de mão; uns lábios que se roçam; uma boca quente, doce e húmida que nos dá de beber e sacia; um abraço violento; um primeiro abraço lento… Mas o amadurecer do dia tem a vantagem de desvanecer os sonhos. Com a sua aproximação ao zénite, o Sol arrasta para longe as emoções despertadas pelas memórias do sono.

Primeiro dia de colégio.

No teu primeiro dia de colégio, a diferença mais significativa entre tu e o grupo onde foste inserida foi o de pedires autorização antes de mexer no que quer que fosse. E essa foi a única queixa que recebemos!

Pode um gene humano ser propriedade privada?

Há muitos anos que me tenho manifestado contra a objetivação do corpo que legitima a sua transação, assuma ela a forma de prostituição ou venda de órgãos. Os dias que correm provam que as minhas preocupações tinham razão de ser: soube há pouco que uma empresa ligada a biotecnologia pretende patentear um gene humano. A ser autorizado, a empresa tem o exclusivo de usar esse gene e cobrar por qualquer químico que sobre ele aja. Ainda que sejam produtos de combate a determinadas doenças, como o cancro. A ser autorizado, o próprio diagnóstico e estudo do gene estaria dependente da autorização da detentora da patente. Ou seja, a pessoa humana estaria dependente da autorização dessa empresa para fazer um determinado tratamento, caso fosse possuidor desse gene. Isto é grave e traz-me à memória o comércio do corpo humano, não apenas na forma da escravatura, mas as próprias fábricas da morte nazis. Ora, quando relativizamos valores, corremos estes riscos. Desconhecemos sempre o que nos reserv

Política e participação

Tenho dado por mim a pensar sobre as razões da indiferença e da falta de participação dos cidadãos na política. E vou descobrindo que tal se deve a múltiplos motivos. Mas aquele que me parece maior e que mais me preocupa prende-se com a perceção de que as decisões, tomadas pelo poder político - que em Portugal tem o exclusivo da intervenção política - são sugeridas por lóbis e por interesses obscuros. Esta perceção leva a que as pessoas questionem sobre a importância e validade do seu voto no processo de tomada de decisão, uma vez que o sistema político português assenta numa partidocracia efetiva, ainda que não assumida. Para que esta lógica se inverta, vejo apenas uma solução: chamar as pessoas para os processos de decisão, fomentado a participação, organizada ou não, dos cidadãos. Não vejo solução que não passe pelo aumento do peso da democracia participativa.

A Madeira que vive em mim tem uma imagem antropomórfica, tem um espírito, uma alma e uma consciência

A lembrar a Madeira, no seu dia, recupero um texto escrito há uns anos: Contra a minha racionalidade religiosa, convivo, desde sempre, com um certo misticismo bretão, druídico, que me permite reconhecer o espírito da terra. Por isso, a Madeira para mim não é apenas uma ilha, não é apenas um local, não é uma simples referência geográfica. A Madeira que vive em mim tem uma imagem antropomórfica,  tem um espírito, uma alma e uma consciência. Por ela sou uma espécie de Átis que ama e vive para a sua deusa Cibele. Submeto-me a ela com a pequenez de um humano, ante a grandeza da divindade. A Madeira é minha utopia, é a representação terrena do paraíso, é o meu delírio onírico, é a minha maior paixão. Por tudo isto sinto que nunca saí da Madeira. É verdade que estive - e, por mais um acaso dos destino, permaneço – deslocado. Mas nunca esse deslocamento representou uma ausência. Não teria sido possível. Não para mim. E foi assim que dei comigo em Coimbra, com a esperança e optimismo que se pr

Desgraça, Mandela e a história não contada da África do Sul

Há já alguns meses li a Desgraça, de J. M. Coetzee. E, então, fiquei com a sensação de que há uma história, pós-apartheid, de violência, racismo, punição e expiação que ainda falta contar. Talvez um pouco a despropósito da fase crítica porque passa Nelson Mandela, porque o líder africano não é responsável pelos vícios históricos que ocorrem no país, e, nomeadamente, por ver expressas opiniões, mais ou menos apaixonadas, sobre a África do Sul e sobre a bondade do legado de Madiba, voltei a recordar do livro e da impressão com que fiquei. Poder-se-ia dizer que Desgraça conta a história do declínio de um homem branco, um professor universitário, um intelectual, na África do Sul. E seria verdade. Mas a história que mais me interessou, foi a da violência racista de que são alvos os brancos naquele país. A violação da filha do professor Lurie não é um ato de violência de género. O ódio que ela vê nos rostos dos homens revela que eles “apenas” estão a cobrar aquilo que acham que têm direito

Dia do pai (2013)

Não sou adepto do desconstrutivismo, mas há muito que venho refletindo sobre o verso de Rimbaud "je est un autre". Sei bem que se aproveitou deste verso para mostrar a atitude ética da precedência da alteridade. Percebo-o, muito bem, quando entro no olhar da minha filha. Mas acho que as palavras do poeta francês tinham, também, talvez, um outro significado. Ali está inscrito o facto de sermos múltiplos outros. Somos filhos, somos irmãos, somos amigos, somos amantes, somos trabalhadores, somos camaradas, somos pessoas, somos bons, somos maus. E eu, também sou isto tudo. Não obstante, não tenho a mínima dúvida que na assunção de ser, o que sou, mais do que tudo, é pai. Pelo menos é isso, de tudo o que sou, aquilo que mais gosto de ser.

Ditos de Beatriz em dia de Carnaval

-Pai, eu gosto muito de ti. e vais te pôr quieto! Filha, queres ajuda? - Não, obigada. Eu ajudo-me!