Desgraça, Mandela e a história não contada da África do Sul
Há já alguns meses li a Desgraça, de J. M. Coetzee. E, então, fiquei com a sensação de que há uma história, pós-apartheid, de violência, racismo, punição e expiação que ainda falta contar. Talvez um pouco a despropósito da fase crítica porque passa Nelson Mandela, porque o líder africano não é responsável pelos vícios históricos que ocorrem no país, e, nomeadamente, por ver expressas opiniões, mais ou menos apaixonadas, sobre a África do Sul e sobre a bondade do legado de Madiba, voltei a recordar do livro e da impressão com que fiquei.
Poder-se-ia dizer que Desgraça conta a história do declínio de um homem branco, um professor universitário, um intelectual, na África do Sul. E seria verdade. Mas a história que mais me interessou, foi a da violência racista de que são alvos os brancos naquele país. A violação da filha do professor Lurie não é um ato de violência de género. O ódio que ela vê nos rostos dos homens revela que eles “apenas” estão a cobrar aquilo que acham que têm direito. E fazem-no impunemente, não apenas porque as autoridades não são capazes de o impedir – não cometerei a possível injustiça de dizer que não querem -, mas porque toda a comunidade encobre os crimes. Há uma penitência para os brancos que querem viver na nação do arco-íris. E ninguém está isento de a pagar.
Mas se impressiona a atitude da comunidade negra perante este “castigo” que alguns acham que têm direito a impingir aos brancos – porque qualquer branco na África do Sul “é responsável” pelos crimes de origem racista que, durante séculos, foram cometidos contra os negros - é ainda mais impressionante a aceitação passiva dos brancos, especialmente, dos mais jovens. A letárgica resignação com que a filha de Lurie aceitou a violação de que foi alvo mostra-nos que ela própria sente necessidade de expiar os crimes brancos. E aceita-o porque entende ser o seu tributo para ali poder viver. O pagamento da sua quota, pela pesada herança criminosa que acredita ter recebido.
Ora, esta é efetivamente uma história ainda não contada. E não é propriamente a defesa dos brancos que aqui quero fazer. O que me preocupa verdadeiramente é que, como nos mostra Dostoiévski, em Crime e castigo, o castigo não acaba com a violência do crime inicial. A expiação dos pecados pela comunidade branca é em tudo semelhante à do condenado à morte, na obra de Dostoiévski, que no “momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés - e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene -, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço, a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver! O homem é covarde!"
E sabemos que a cobardia é uma das dimensões que interage com a violência. Esta história revela essa agressividade latente de origem racista que se vive no seio da sociedade sul-africana e que pode, a qualquer momento, explodir. É uma comunidade não formada, que ainda não esqueceu o passado. Pudessem todos os sul-africanos, negros e brancos, ser fiéis ao legado de Nelson Mandela e aquela nação estaria no bom caminho. Entretanto, temo que assim não seja. Como nos ensinou Dostoiévski, “o sangue todos o derramam. [...] Esse sangue corre sempre em onda sobre a terra. Quem o derrama como champanhe sobe logo ao capitólio e é tratado como benfeitor da humanidade”. E naquele país, infelizmente, ainda falta correr muito sangue por motivos racistas. O sangue e o sofrimento de Mandela não chegaram. São símbolos, referenciais que devem ser mantidos e louvados, mas a realidade cruel é de que Madiba não leva consigo a história de violência do seu amado país. Ele parte, mas com a sua memória permanecem as incertezas quanto ao futuro do país do arco-íris.
Poder-se-ia dizer que Desgraça conta a história do declínio de um homem branco, um professor universitário, um intelectual, na África do Sul. E seria verdade. Mas a história que mais me interessou, foi a da violência racista de que são alvos os brancos naquele país. A violação da filha do professor Lurie não é um ato de violência de género. O ódio que ela vê nos rostos dos homens revela que eles “apenas” estão a cobrar aquilo que acham que têm direito. E fazem-no impunemente, não apenas porque as autoridades não são capazes de o impedir – não cometerei a possível injustiça de dizer que não querem -, mas porque toda a comunidade encobre os crimes. Há uma penitência para os brancos que querem viver na nação do arco-íris. E ninguém está isento de a pagar.
Mas se impressiona a atitude da comunidade negra perante este “castigo” que alguns acham que têm direito a impingir aos brancos – porque qualquer branco na África do Sul “é responsável” pelos crimes de origem racista que, durante séculos, foram cometidos contra os negros - é ainda mais impressionante a aceitação passiva dos brancos, especialmente, dos mais jovens. A letárgica resignação com que a filha de Lurie aceitou a violação de que foi alvo mostra-nos que ela própria sente necessidade de expiar os crimes brancos. E aceita-o porque entende ser o seu tributo para ali poder viver. O pagamento da sua quota, pela pesada herança criminosa que acredita ter recebido.
Ora, esta é efetivamente uma história ainda não contada. E não é propriamente a defesa dos brancos que aqui quero fazer. O que me preocupa verdadeiramente é que, como nos mostra Dostoiévski, em Crime e castigo, o castigo não acaba com a violência do crime inicial. A expiação dos pecados pela comunidade branca é em tudo semelhante à do condenado à morte, na obra de Dostoiévski, que no “momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés - e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene -, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço, a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver! O homem é covarde!"
E sabemos que a cobardia é uma das dimensões que interage com a violência. Esta história revela essa agressividade latente de origem racista que se vive no seio da sociedade sul-africana e que pode, a qualquer momento, explodir. É uma comunidade não formada, que ainda não esqueceu o passado. Pudessem todos os sul-africanos, negros e brancos, ser fiéis ao legado de Nelson Mandela e aquela nação estaria no bom caminho. Entretanto, temo que assim não seja. Como nos ensinou Dostoiévski, “o sangue todos o derramam. [...] Esse sangue corre sempre em onda sobre a terra. Quem o derrama como champanhe sobe logo ao capitólio e é tratado como benfeitor da humanidade”. E naquele país, infelizmente, ainda falta correr muito sangue por motivos racistas. O sangue e o sofrimento de Mandela não chegaram. São símbolos, referenciais que devem ser mantidos e louvados, mas a realidade cruel é de que Madiba não leva consigo a história de violência do seu amado país. Ele parte, mas com a sua memória permanecem as incertezas quanto ao futuro do país do arco-íris.
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