Restart!
Canterbury, 24 de julho de 2012
Beatriz,
Passaram-se quase dois anos desde a última vez que te escrevi. Aconteceu no teu primeiro dia de vida. Desde então, tenho-me dedicado a comunicar contigo apenas oralmente. Em parte porque queria habituar-te ao som da minha voz. Mas, principalmente, porque me pareceu que a tua presença exigia-me a palavra falada. Diria que por entender ter outra força, a palavra falada. Mas a razão é talvez mais egoísta: queria sussurrar-te ao ouvido tudo o que estava impresso no meu sangue e não se sussurra escrevendo. O sussurro destina-se apenas aos ouvidos e ao vento.
Mas, muito provavelmente devido à distância, sinto uma imperiosa necessidade de te escrever. Sei que me ouves, generosidade da tecnologia (não será a escrita já uma tecnologia, senão a mais avançada tecnologia humana?). Mas não se sussurra ao telefone. O metal que se insinua na voz ouvida ao telefone rasga a palavra viva.
Por isso, como não se pode sussurrar ao telefone, posso, pelo menos, eternizar as palavras, até que um dia as consigas ouvir, ao som da tua própria voz. E sei que, então, entenderás que estas são palavras tuas. É certo que sou eu que as digito. Mas não sou o dono delas. Elas pertencem apenas a quem se destinam.
As palavras não são livres. Vão sendo montadas em pequenos grupos, até começarem a fazer sentido. Assim como uma espécie de puzzle se edifica, quando chegam ao seu destinatário. E o destino destas és tu.
Fazes-me falta, digo e escrevo, sabendo, de antemão, que não passa de um cliché, de palavras tantas vezes marteladas, frequentemente sem a verdade que lhes pretendo conferir. Contudo, não me ocorrem outras. Fazes-me falta, portanto. Porque não estou completo na tua ausência. Porque a despeito do que dizem os poetas e os filósofos, não é a ausência que nos dá ser. A presença é o que nos confere a autenticidade e nos situa neste horizonte ontológico a que chamamos ser. E já não sou, sem ti.
Como sabes, a nossa relação iniciou-se há já muito tempo. Estiveste escondida, resguardada do mundo, mas já há muito que nos intuímos mutuamente. Não te fiz, porque já eras. Sabia-te e não te conhecia. Há qualquer coisa neste universo complexo que nos comunica aquilo que desconhecemos. Talvez não tudo. Mas o que verdadeiramente é importante para cada um de nós. Mas, dizia eu, que já existias mesmo antes de teres sido concebida. Porque entendo o mundo como uma continuidade eterna. Estamos aqui, depois estamos lá. Mas não deixamos de ter uma forma. Melhor, não deixamos de ser parte dessa centelha criadora, que perpetua o tempo e nos dá a possibilidade de existir. E desta forma sei que sempre foste e que caminhaste até mim. Chamar-me-ão tolo. Místico. E não será a verdade, ela própria, apenas uma forma de misticismo? Ou o que é a perfeição?
Dorme bem, meu amor.
Beatriz,
Passaram-se quase dois anos desde a última vez que te escrevi. Aconteceu no teu primeiro dia de vida. Desde então, tenho-me dedicado a comunicar contigo apenas oralmente. Em parte porque queria habituar-te ao som da minha voz. Mas, principalmente, porque me pareceu que a tua presença exigia-me a palavra falada. Diria que por entender ter outra força, a palavra falada. Mas a razão é talvez mais egoísta: queria sussurrar-te ao ouvido tudo o que estava impresso no meu sangue e não se sussurra escrevendo. O sussurro destina-se apenas aos ouvidos e ao vento.
Mas, muito provavelmente devido à distância, sinto uma imperiosa necessidade de te escrever. Sei que me ouves, generosidade da tecnologia (não será a escrita já uma tecnologia, senão a mais avançada tecnologia humana?). Mas não se sussurra ao telefone. O metal que se insinua na voz ouvida ao telefone rasga a palavra viva.
Por isso, como não se pode sussurrar ao telefone, posso, pelo menos, eternizar as palavras, até que um dia as consigas ouvir, ao som da tua própria voz. E sei que, então, entenderás que estas são palavras tuas. É certo que sou eu que as digito. Mas não sou o dono delas. Elas pertencem apenas a quem se destinam.
As palavras não são livres. Vão sendo montadas em pequenos grupos, até começarem a fazer sentido. Assim como uma espécie de puzzle se edifica, quando chegam ao seu destinatário. E o destino destas és tu.
Fazes-me falta, digo e escrevo, sabendo, de antemão, que não passa de um cliché, de palavras tantas vezes marteladas, frequentemente sem a verdade que lhes pretendo conferir. Contudo, não me ocorrem outras. Fazes-me falta, portanto. Porque não estou completo na tua ausência. Porque a despeito do que dizem os poetas e os filósofos, não é a ausência que nos dá ser. A presença é o que nos confere a autenticidade e nos situa neste horizonte ontológico a que chamamos ser. E já não sou, sem ti.
Como sabes, a nossa relação iniciou-se há já muito tempo. Estiveste escondida, resguardada do mundo, mas já há muito que nos intuímos mutuamente. Não te fiz, porque já eras. Sabia-te e não te conhecia. Há qualquer coisa neste universo complexo que nos comunica aquilo que desconhecemos. Talvez não tudo. Mas o que verdadeiramente é importante para cada um de nós. Mas, dizia eu, que já existias mesmo antes de teres sido concebida. Porque entendo o mundo como uma continuidade eterna. Estamos aqui, depois estamos lá. Mas não deixamos de ter uma forma. Melhor, não deixamos de ser parte dessa centelha criadora, que perpetua o tempo e nos dá a possibilidade de existir. E desta forma sei que sempre foste e que caminhaste até mim. Chamar-me-ão tolo. Místico. E não será a verdade, ela própria, apenas uma forma de misticismo? Ou o que é a perfeição?
Dorme bem, meu amor.
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