Memórias de um homem velho

Haviam-lhe dito que vivia assombrado. Que os corpos caídos são memórias guardadas, sem que sequer perceba os fios que foi tecendo ao longo da vida.
Tinham-lhe dito que o importante, neste percurso que inexoravelmente o conduz à imortalidade, é quantidade de cadáveres que consegue preservar: porque os outros regressam e não o abandonam! Acompanham-no com a única finalidade de lhe acizentar o olhar. Querem entristecer as mãos que não os souberam ou quiseram proteger. São constantes, sombras permanentes que lhe enrugam a alma.
Recomendavam-lhe cautela, para não se deixar intimidar pelos mortos sem que, contudo, deixasse de estar atento aos espíritos que o seguiam. Porque nem todos lhe desejariam bem.

Contudo, foi naquela manhã que percebeu que afinal era ele que assombrava os seus mortos. Que os perseguia porque assim se penitenciava. A assombração era a água que o purificava de todas as palavras malditas do passado. As almas exigem que os liberte, mas ele não o pode fazer. As palavras foram ditas e precisam de ser vingadas.
Pensava que assim exorcizava-se a si mesmo, renascendo outro.

Sabia que, para alguns fantasmas, de longe vinha o hábito de matar os amigos mais antigos. Reconhecia-se velho, mas já não temia sofrer a morte. Há ligações que se quebram e nada há a fazer a esse respeito. Matassem-no, se era isso que queriam. Exercessem esse poder terrível sobre o seu corpo, agora que o condenaram ao esquecimento. Percebia que às vezes era mais fácil a essas assombrações apaixonarem-se pelo fogo-fátuo que produzem. O tempo é ainda mais veloz quando se existe para assombrar ou ser assombrado. Portanto, que o substituíssem por novas paixões e que as promessas permanecessem perdidas. Na ausência desse presente que suspeitava um dia vir a observar.


A palavra não tem passado, é sempre presente, pensou. A palavra é habitada pelo espírito do tempo, na circunstância exata, por quem tem de ser. Era esta a morada que queria para si. Porque pior do que não se reconhecer quando se olha ao espelho, é não reconhecer os olhos que o fizeram sonhar. Queria conjurar os fantasmas mas não obtém qualquer resposta. E percebe que está condenado a olhar um rosto desejado e não sentir nada.

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