7-38-55

Fala o velho.
Já te amava, quando me alertaste para não me apaixonar por ti. Por isso não te perdoo o atraso no alerta. Deverias ter-me avisado que te entregavas por metade e que era isso que exigias aos outros.
Fala ela.
A decrepitude não te permitiu perceber que um corpo ama no momento em que é amado. Depois, volta unicamente a amar-se. Ao contrário do que pensas, as estrelas não se agregam. Afastam-se eternamente.
Fala o velho.
Tens razão. A senilidade é a minha condição de ser. E tu sempre foste demasiado moderna. Mas também sei que és bondosa.
Fala ela.
De novo a técnica do espelhamento? Não vês que já não há mimetismo entre nós?
Sei demasiado. Posso berrar e os teus sussurros graves já não me acalmam. E sinto prazer em saber que não saciarei a excitação que a minha voz aguda te provoca.
Fala o velho.
Mas se a palavra mente e por isso a banalizas, sabes bem que o rosto é verdadeiro.
Fala ela.
O rosto é o maior mentiroso social. O que diz não é verdade. Ainda que fosses capaz de ler o meu rosto, o que dele extrairias não te serviria para nada. O que são nano-segundos de verdade?
Fala o velho.
E a prosódia, diz-te alguma coisa? Não queres a minha palavra, fica com a minha voz. Pode ser que assim ainda possamos estar em comum.
Fala ela.
Para que quero a voz de um velho? Percebes que te tenho andado a dizer que já não consegues comunicar?! Não é possível mais que te transfiras para mim.
Fala o velho.
E a água que te matou a sede? Que te dei da minha boca e que bebeste às golfadas? Também isso foi momentâneo?
Mas a água perdurou em ti, mesmo quando me afastei. Continuou a alimentar-te muito depois de eu ter partido. Essa água que te deu vida. Que fizeste dela? Vomitaste-a nas minhas costas? Ou manteve-se contigo, reproduzindo-se por todo o teu corpo, alimentando as tuas células?
Fala ela.
Que sabes tu, ó velho? Água é só água. Não tem qualquer propriedade esotérica ou mística que lhe queiras atribuir. E veio da tua boca, mas poderia ter vindo de um copo, de uma caneca, de uma poça. Era apenas água.
Fala o velho.
Água que vem da boca ou mesmo das mãos não é água. É vida. E se não percebeste isso, ainda não sabes nada.

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