Olifaque, ou uma sociedade que vive entre o medievalismo e a hipermodernidade


Há dias, a propósito do lançamento do seu mais recente livro – Olifaque! –João Magueijo afirmava que o povo português mantinha algumas características tipicamente medievais. O físico e investigador justificava esta sua afirmação pelas inegáveis manifestações que persistem na sociedade portuguesa: índices excessivamente elevados de violência doméstica e de género; fraco reconhecimento da importância da educação/formação e níveis de iliteracia elevados; racismo e xenofobia; machismo; manifestações de agressividade e de brutidade mais ou menos recorrente.
Magueijo sustenta esta posição não apenas pela observação que faz em Portugal, mas especialmente pelo que diz observar nas comunidades portuguesas, nomeadamente na do Reino Unido (onde reside) e na do Canadá (onde viveu durante dois anos).
Passando algum exagero que reconheço ao autor, a verdade é que diariamente os meios de comunicação social nos mostram uma realidade que parece coincidir com aquela que nos descreveu Magueijo.
​É surpreendente como é que um país que revela todas as características das sociedades democráticas ocidentais, industrializadas e desenvolvidas ainda manifesta alguns padrões anacrónicos de subdesenvolvimento. Apesar de termos elevados índices de penetração de tecnologias de informação, comunicação social livre ou pelo menos plural, alternância política, acesso à educação e à cultura, paradoxalmente, ainda não nos conseguimos libertar de alguns comportamentos e práticas sociais que melhor assentariam ao “homem de quinhentos” do que propriamente a uma sociedade evoluída do século XXI. Vivemos na era da liberdade individual, naquilo a que Gilles Lipovetsky designa por hipermodernidade, e ainda assim denotamos padrões de comportamento algo trogloditas.
Atentemos a estes factos: segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), entre 2013 e 2016 foram praticados 71 098 crimes de violência doméstica; em 2017, foram assassinadas 22 mulheres pelos seus cônjuges/namorados; há sentenças em tribunais portugueses que justificam a violência de género por razão de adultério; o estudo Atitudes Sociais dos Portugueses, com dados do European Social Survey, que inquiriu 30 mil pessoas com mais de 15 anos em 20 países, revela que Portugal apresenta um alto índice de racismo (30% superior à média europeia).
Ora, a pergunta que devemos colocar é: vivemos numa sociedade hipermoderna ou numa sociedade medieval? E como é possível na nossa sociedade conviverem estas duas dimensões, aparentemente paradoxais, sem se anularem uma à outra?
Não me parece haver uma resposta única ou simples. Creio, contudo, que a hipermodernidade descrita por Lipovetsky não anula comportamentos medievais, antes exponencia-os. Isto é, uma das características da hipermodernidade identificadas por Lipovetsky - a “cultura individualista democrática”- parece conter o “genoma” para a perpetuação de comportamentos medievais.
A crença absoluta na liberdade individual, que não raras vezes descamba no subjetivismo e no relativismo – algumas das “doenças infantis” que decorrem deste tipo de liberdade – é o substrato que garante práticas retrógradas de violência e agressividade contra outrem. Se o sujeito é a medida de todas as coisas, como defendia Protágoras, e se a verdade não passa da “mentira individual”, não existe razão para nos colocarmos no lugar de Outro, atitude ética essencial para que possamos ultrapassar esses anacronismos morais. De facto, parece que esta dimensão da hipermodernidade garante e exponencia práticas, atitudes e pensamentos que deveriam estar expurgados de uma sociedade evoluída. Aliás, se formos a ver bem, nem o mercado nem a tecnociência – outras características do universo hipermoderno – são dissuasoras deste tipo de comportamento, antes constituem-se como veículos para a sua promoção.
Lipovetsky crê que esta hipermodernidade irá implicar uma aproximação universal nos princípios e modos de vida, uma vez que as marcas dessa hipermodernidade (até como a competitividade e o individualismo) também estão presentes em países e sociedades fundamentalistas.
Tem razão. Mas aproxima também no pior. Algumas das características da hipermodernidade exponenciam os mais graves defeitos das sociedades. No caso português, vai servindo também para aprofundar tudo aquilo que temos de mais troglodita.
Votos de um feliz ano novo!
https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/853/Olifaque_ou_uma_sociedade_que_vive_entre_o_medievalismo_e_a_hipermodernidade



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