IDEOLOGIA NÃO É PANACEIA Opinião | 21/10/2022 08:00

 


O povo perdeu a confiança do governo
E só à custa de esforços redobrados
Poderá recuperá-la. Mas não seria
Mais simples para o governo
Dissolver o povo
E eleger outro?
Bertolt Brecht, Poemas


Disclaimer: se o leitor é púdico, salte o primeiro parágrafo.

A política sem ideologia é uma puta. Mas a ideologia não pode escravizar a política!

Quer isto dizer que nem a política, nem as sociedades se podem submeter à pureza das doutrinas, por mais belas que sejam as ideias e atrativas as ideologias.

A política tem de ser feita partindo de premissas ideológicas, claro, mas com uma boa dose de pragmatismo, atenta ao contexto e à factualidade. Quando a política se torna refém da ideologia nascem regimes totalitários. Ou medidas políticas absurdas. E por isso, as ideologias têm de ser dinâmicas e permeáveis. Um bom político é aquele que, com sólida formação ideológica, percebe que a política tem de ser exercida atenta às diversas faces da realidade e às suas múltiplas dimensões e variantes. Parte de ideias firmes, mas conhece a importância do contexto e do compromisso.

Vem isto a propósito daquilo que me vem parecendo como uma submissão excessiva de alguns partidos políticos à ideologia, mesmo que o conhecimento, a prudência e o pragmatismo aconselhem outra coisa. Se no caso do comunismo, esse é o seu status quo (submissão absoluta da realidade à ideologia), no caso do liberalismo contemporâneo a “coisa” vem em crescendo.

Tome-se o exemplo do ex-ministro das Finanças britânico, Kwasi Kwarteng. Como uma das grandes medidas para o choque fiscal que entendeu ser necessário à economia britânica, apresentou uma redução no imposto sobre os rendimentos dos contribuintes mais ricos, pretendendo poupar-lhes cerca de 2.000 milhões de libras.

A teoria que, na doutrina económica, dá pelo nome de Trickle-down economics (economia do gotejamento), é de que a poupança gerada aos mais privilegiados irá gotejar para todos os outros sectores da sociedade, através do investimento gerado e da diminuição das taxas de juro, promovida pela poupança.

O problema é de que isto é uma mera manifestação ideológica do liberalismo contemporâneo. Do ponto de vista da ciência económica, é extremamente contestada e nem o FMI vai na “conversa”. Até porque, em regra, este tipo de poupança não goteja para a sociedade e acaba em paraísos fiscais.

Ronald Reagan já havia testado a teoria, sem qualquer tipo de resultado positivo. Trump ressuscitou-a e também não se conhecem resultados.

Ora, colocá-la em prática no meio de uma contração económica e com uma inflação galopante, parece um absurdo que apenas passaria pela cabeça de um político que nega a realidade. Um político que submeteu totalmente à ideologia aquilo que deveria ser a sua ação (política). E isto, para tomar por bom que a medida não visa apenas favorecer os ricos e privilegiados.

Este é o exemplo claro do que acima dizia, sobre o liberalismo contemporâneo: acreditam de tal forma na sua própria ideologia que mesmo que a realidade lhes diga algo diferente, parece-lhes que a realidade é que está errada (mude-se o povo, conforme ironizava Brecht).

Eu sou daqueles que entende que a emergência dos partidos liberais, nos últimos anos, fez bem às democracias. Todavia, é fundamental que compreendam que a sua ideologia não é panaceia para todos os males. E que percebam quando a realidade lhes diz outra coisa. Para não caírem no risco de fazerem como aqueles que tanto criticam!


https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/6924/Ideologia_nao_e_panaceia


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