Ignorância atrevida 23/08/2024 08:00
Antes de mais, o mais importante: mando daqui o meu abraço solidário a todos os homens e mulheres que combateram e ainda combatem os fogos, aos líderes políticos que estiveram na linha da frente, coordenando os trabalhos, apoiando as populações e comunicando com a sociedade, e a todas as pessoas que, de uma maneira ou de outra, viram a sua vida afetada por esta tragédia!
Certa vez, numa conversa acalorada, disse a um colega que não basta ler um livro para ser especialista numa determinada área. Por estes dias, dou por mim a pensar que há imensas pessoas que nem um livro leram e já se julgam “sábios em geral”. Uns autênticos renascentistas que dominam todos os assuntos, mesmo os mais complexos e que não se coíbem de debitar alarvidades, julgando parir pérolas cintilantes.
Vem esta conversa a propósito dos inúmeros comentários que li, vi e ouvi sobre incêndios que, nos últimos dias, assolaram a nossa ilha.
Ponto de ordem: não percebo nada de incêndios, de como os combater, nem de como se deve proceder para proteger as populações ou o património (natural e edificado). Eu não percebo. Mas os especialistas do Serviço Regional de Proteção Civil e os bombeiros percebem. Porque é isso que eles fazem, é o seu trabalho e é a isso que se dedicam. E é neles que eu tenho de confiar porque, certamente, leram livros sobre esta área, pensaram sobre isso, treinaram muito para se prepararem.
Não são os políticos que combatem incêndios. Aliás, como se tem visto, um sem-fim de políticos e ex-políticos madeirenses, de todos os quadrantes, até se têm comportado como autênticos pirómanos. Quando temos valorosos homens e mulheres empenhados no combate às chamas, autoridades entregues à coordenação e à comunicação, aparecem esses egrégios especialistas do achismo a debitar sentenças sobre o que está a ser feito, o que se fez e o que se deve fazer. Pensar antes de falar? Estudar antes de debitar? Ler um livro, ao menos? Para quê, se podemos incendiar as redes sociais com disparates populistas e demagógicos? É colocar uns vídeos melodramáticos que tocam fundo no coração das pessoas, isolar factos, não os contextualizando, mostrar uma foto do galinheiro carbonizado do senhor João ou da senhora Maria, misturar bem com mentiras e meias-verdades et voilá, deixar alastrar, que as redes sociais são pasto fértil para a propagação da ignorância atrevida!
Conta-se que Filipe II, rei macedónio e pai de Alexandre o Grande, quando cercava a cidade de Pérgamo, foi abordado por um dos seus oficiais, acompanhado por um traidor que se oferecia para facilitar a captura da cidade. Perante esta oferta, Filipe II terá respondido: “Eu não pago a traidores. Se tu trais a tua própria cidade, como é que posso confiar em ti?”
A atitude de Filipe II reflete uma ética comum na Antiguidade, onde a lealdade era altamente valorizada nas relações políticas e a desonestidade e a insídia vistas com extrema desconfiança, mesmo quando pudesse proporcionar vantagens.
Ora, parece que a esmagadora maioria dos agentes políticos madeirenses esqueceu este ensinamento clássico. Ninguém gosta de abutres que tentam debicar a carniça quando ainda, no corpo, resta um sopro de vida. Quando se está num meio de uma crise, o que se espera é solidariedade, prudência e responsabilidade. É nestes momentos que se revela o carácter das pessoas e dos políticos. A sua verve. A sua grandeza!
Obviamente que discordar e criticar é legítimo. As sociedades querem-se plurais, com diversidade de pensamento. Propor alternativas faz parte da dinâmica democrática. A divergência engrandece a comunidade e eleva o debate. Ninguém quer unanimismos. Mas há um tempo e um modo. Discordar, criticar e exercer a liberdade de pensamento e de expressão não é intrigar, não é boicotar, não é sabotar, não é caluniar. Que foi o que a esmagadora maioria dos líderes políticos fizeram durante a crise dos incêndios.
A cultura clássica faz sempre falta. Nem que seja para perceber que, por regra, a consequência deste tipo de comportamento é a inevitável rejeição desses projetos. Porque bem podem tentar aproveitar a desinformação. Mas é certo que, mais cedo ou mais tarde, o feitiço volta-se contra o feiticeiro. Portanto, ainda que pareça, na espuma dos dias, não dar frutos, o melhor é mesmo manter o pensamento crítico, a humildade intelectual e o reconhecimento da importância do conhecimento. E agir em consonância.
https://www.jm-madeira.pt/opiniao_cronicas/ignorancia-atrevida-GC16509078
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