Da absurda semelhança dos partidos do sistema

Opinião | 24/11/2017

Não sou um grande leitor de Saramago: li apenas 4 ou 5 livros do autor. Mas a mulher que me acompanha há 20 anos é. E, há dias, numa conversa sobre algumas das consequências advindas do resultado das eleições autárquicas, falou-me do “Ensaio sobre a Lucidez”, do nobel português.
Genericamente, o livro versa sobre os efeitos que decorrem de uma massiva votação em branco. Se a esmagadora maioria dos eleitores votasse em branco, o que é que isso significaria? Seria uma manifestação de lucidez do povo, cujo nível de exigência o leva a rejeitar todas as propostas eleitorais que lhe são apresentadas? Ou, por outro lado, apenas revela o seu alheamento?
Seja como for, nem é esta dimensão que me interessa abordar. O que me parece interessante é o aparente vazio de poder que daqui decorre. Se nenhuma força política tem legitimidade para governar, não estarão todas elas condenadas ao entendimento, de forma a viabilizar um governo composto por todos? Ora, neste ponto, nesta espécie de refundação do sistema democrático que emerge do caos eleitoral, parece-me haver alguma similitude com aquilo que se passa, atualmente, em Portugal.
Já há algum tempo que temos assistido a alterações no panorama político-partidário português, a exemplo do que vem acontecendo nas democracias ocidentais. Não ocorreram aqui fenómenos extremos, como o relatado no livro de Saramago ou como aquele que aconteceu em França, com a eleição de Emmanuel Macron, cuja vitória sobre Marine Le Pen pulverizou o tradicional espectro partidário francês.
​Mas a verdade é que as eleições autárquicas de outubro tiveram consequências impensáveis há pouco tempo atrás, com coligações, acordos e entendimentos para todos os gostos.
Não me atrevo a atribuir este fenómeno à Geringonça – alguém em Portugal achou que o PCP, alguma vez, integraria uma coligação que não fosse aquela com os Verdes? -, mas por todo lado emergiram caranguejolas, engenhocas, passarolas e traquitanas, com acordos que escapam a qualquer (ideo)lógica. Mais: há acordos entre partidos numa determinada freguesia radicalmente opostos a outros na freguesia vizinha, sem coerência a nível concelhio, quanto mais regional ou nacional. Quer isto dizer: das traquitanas que emergiram não é possível projetar entendimentos ou aproximações ideológicas ou de agendas programáticas consistentes. São tão só entendimentos pontuais, casuísticos, para efeitos de disputa do poder.
Não estou certo do que daqui resultará, nem consigo antecipar cenários melhores ou piores para a democracia portuguesa.
Mas há uma coisa que me parece claro: com estes acordos, absolutamente legítimos do ponto de vista democrático, os partidos reconhecem a absurda semelhança de atitudes e posturas em partidos que se declaram diferentes, mas que, desta forma, revelam não apresentar verdadeiras alternativas aos eleitores, ao nível ideológico e programático. Até ao nível de protagonistas as semelhanças são impressionantes. Ao exercer o nosso direito e dever de voto, deixamos de conseguir antecipar o que irá acontecer: uma governação mais à direita ou mais à esquerda, mais conservadora ou mais socialista, mais liberal ou mais social-democrata.
Mas se o “centrão” político aglomera agora a grande maioria de partidos - senão todos! -, a resposta para verdadeiras alternativas também não parece estar nos movimentos de cidadania que, em Portugal, se associam aos partidos tradicionais ou tornam-se eles próprios partidos do sistema. Movimentos ou candidatos independentes são-no tudo menos aquilo que anunciam. E não sendo o que anunciam, o que são, então?
Estão os partidos e o sistema partidário em crise? A realidade mostra-nos que sim. Os eleitores parecem não confiar no sistema, nos partidos ou nos políticos. O próprio sistema, atualmente, apenas tem para oferecer unanimismos, em detrimento de diferença, diversidade e alternativa. É, por isso, urgente, a sua refundação. A alternativa será sempre pior!

https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/732/Da_absurda_semelhanca_dos_partidos_do_sistema

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