HALLOWERN OU OS FANTASMAS NA POLÍTICA Opinião | 31/10/2019 08:50


Pela primeira vez, estamos em presença de uma sociedade que, longe de exaltar a observância dos preceitos superiores, faz deles um uso eufemístico e lança-os no descrédito, deprecia o ideal da abnegação mediante o estímulo sistemático à satisfação das aspirações imediatas, à paixão pelo ego, à felicidade intimista e materialista. As nossas sociedades tornaram inúteis todos os valores inerentes ao sacrifício (…).
Gilles Lipovetsky

No seu «O Crepúsculo do Dever», Gilles Lipovetsky apresenta-nos uma contemporaneidade marcada pelos valores individuais e hedonistas, onde os direitos se impõem aos deveres. É o que ele designa por “sociedade pós-moralista”, caracterizada por uma ética light, a exemplo de tudo o resto. Uma ética minimalista orientada para o prazer, individualista, indolor, subjetiva, que reverencia o imediato, mesmo que efémero e em constante obsolescência. Ante as anteriores éticas teocêntricas ou racionais, caracterizadas por valores transcendentes e universais, eis-nos perante uma ética egocêntrica e materialista, voltada para a autonomia e o prazer do indivíduo.
Ainda que seja fundamental distinguir a dimensão ética e a dimensão política, a verdade é que o pensamento e a práxis políticas não estão imunes à ética light que caracteriza a nossa sociedade. Aliás, um bom exemplo disso é o aparecimento – e o sucesso! - de partidos que se assumem como partidos de causas e não de ideologias. É mais leve, mais suave e simultaneamente mais reconhecido apresentar-se como paladino do ambiente, dos animais, das causas gay , ainda que sejam passíveis de se esgotar na espuma dos dias. Padronizar a ação política de acordo com normas e postulados ideológicos é bem mais difícil.
Sendo dimensões distintas, a verdade é que ética e política não são mais do que faces do mesmo poliedro que é a estrutura social. Por isso, considero ter estado bem, no conteúdo, Rui Rio, quando quis trazer a ética e a moralidade para o centro da ação e do discurso político. Não sou daqueles que acham que os políticos são a pior escória do universo. Aliás, os políticos são a representação fiel da sociedade onde estamos inseridos. São os políticos, mas são, também, os empresários, os jornalistas, os advogados, os juízes, os professores, os pescadores. Estamos todos inseridos na sociedade em que vivemos e não há classe alguma que sobressaia relativamente a outra. E neste sentido, os nossos políticos não são nem melhores nem piores que os demais. Contudo, os contextos moldam e devem moldar aquilo que é o nosso comportamento. E num momento em que a política e a classe política estavam sujeitas à crítica, assente nalguns casos em ética questionável, Rio tentou trazer essa discussão para o centro do debate. Nisso esteve bem.
Falhou Rio, contudo, ao não ter percebido que todos os seres humanos deixam um lastro ao longo da sua vida. Como nos ensinou Habermas, “os homens fazem a sua história, mas não com vontade e consciência”. E a história de cada um de nós, mesmo que nos orgulhe, pode ser percecionada, pelo outro, como algo censurável. A nossa história pode nem ser sempre como a guardamos na consciência ou como gostaríamos que ela tivesse sido. E por isso, falar em “banho de ética” para a classe política foi um erro por parte de Rio, porque se esqueceu de que na história individual de todos nós há sempre algo que nos envergonha e os fantasmas às vezes regressam para nos atormentar. Era bom que Rio percebesse isto nesta sua recandidatura. Mas não apenas Rio: era bom que todos nós, que de uma forma ou de outra desenvolvemos ação política, percebêssemos isto. Para evitar a repetição de erros. E para evitar sermos atormentados pelos cadáveres que deixámos abandonados no nosso passado!

https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/3075/Hallowern_ou_os_fantasmas_na_politica


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