DOS NOSSOS TEMPOS Opinião | 14/05/2020 08:57


Dos nossos tempos

Se há características que marcam o nosso tempo, a contradição e a incoerência - bem como a hipocrisia, que é o grande vício de ambas - são claramente duas delas. Vemo-las por toda a parte e se ousarmos ser radicalmente verdadeiros, até as encontramos em nós próprios e nas nossas ações.
Em boa verdade, isto não é novo: a verdadeira condição do ser humano é o paradoxo. Em cada momento somos sempre outro, pensamos sempre diferente, vemos, ouvimos, sentimos de forma diversa daquela com que o fazíamos ainda um minuto antes. Frequentemente inserimos a contradição em atos, ideias ou afirmações aparentemente sucessivas, de encadeamento lógico.
Como característica fundamental que nos institui enquanto homens, o paradoxo tem sido caracterizado e até aclamado por filósofos, poetas e profetas, que destacam essa nossa capacidade de sermos múltiplos: “Eu sou um outro” “o meu nome é legião” são apenas dois exemplos de máximas literárias que exaltam essa dilaceração que nos fere a cada um de nós e nos marca como homens. Mas se o paradoxo é uma característica humana, parece-me certo que nunca como hoje a incoerência tomou conta do espaço público e social. Não há fidelidade a ideias ou princípios e tudo vai sendo decidido casuisticamente, numa lógica maniqueísta: uns contra os outros, alternando de lado, de ideia, de opinião, de discurso consoante o posicionamento assumido pela clique.
Exemplos? Passámos num ápice de “as máscaras não são aconselhadas” para “todos têm de usar máscara”; ou da pergunta “queria que fossemos mascarados para a Assembleia da República?” para a imposição do seu uso no parlamento; ou do impedimento de circulação entre concelhos para a abertura da exceções para dirigentes sindicais; ou da impossibilidade de acompanhamento de funerais de familiares e amigos para a celebração, em multidão, de efemérides institucionais; ou da defesa do mercado livre para a exigência de apoios estatais ao sector privado; ou da crítica ao uso do nicabe em espaço público para a obrigatoriedade do uso de máscara. Paradigmático é o facto da República, em nome de um bem superior, pretender menosprezar efemérides importantes para a sociedade. Não o fez porque a sociedade não o permitiu. Tergiversou e apenas pela força foi possível evitar mais uma contradição estatal. São as sociedades que fundam os Estados, meus amigos e não o seu contrário.
São tempos inquietantes, portanto, aqueles em que vivemos. Como cidadãos - seres de direitos e de deveres -, mas também como pessoas, prenhes de valores e princípios, poliedros que oscilam entre moralidade e ética, temos de estar vigilantes. Pelo nosso futuro e pelo futuro dos nossos filhos.
Agiotagem
Na semana passada, numa entrevista a Pedro Siza Vieira, José Gomes Ferreira denunciou o desvio, por parte da banca, das linhas de apoio que foram criadas para as empresas em dificuldades devido à pandemia, “secando-as” e impedindo que o financiamento chegue aos empresários que têm mesmo dele necessidade. Entretanto, esses milhões vão financiar empresas amigas de perfeita saúde financeira.
Qual é o interesse da banca? Garantir que os empréstimos ao abrigo destas linhas sejam concedidos a clientes que garantidamente têm capacidade de os pagar. Sem risco para a banca; baixos juros para as empresas amigas. Defendem-se a si e aos seus, ainda que prejudiquem a economia e as empresas que atravessam dificuldades. Recentemente soubemos que mais 850 milhões de euros dos contribuintes foram enterrados no Novo Banco.
Isto revela que a banca mudou as práticas mas mantém a atitude agiota relativamente aos seus clientes, sejam cidadãos ou empresas. É de facto um sector que precisa de ser regulado (senão mesmo controlado) com mão-de-ferro porque perverte qualquer boa ideia em prol do lucro fácil, ainda que isso destrua a vida de milhares. Sendo uma área fundamental, é capaz de ser aquela na qual menos podemos confiar. O que não haveria problema se houvesse alternativa. Mas não há!



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