Efeitos de uma crise

Não sei se é efeito da crise, se é porque estou mais atento, mas a verdade é que vejo cada vez mais indigentes na rua. Ou de mão estendida, sentados nos passeios, ou perseguindo-nos às portas e nos estacionamentos dos supermercados.


Por norma, carregam ao colo crianças, algumas com apenas alguns meses de vida.

Sempre que passo por elas, não lhes consigo enfrentar o olhar. Das crianças. Nos seus olhos vejo refletida, disforme, a minha alma. E é a alma de um pequeno burguês, efetivamente. A imagem de quem ainda consegue manter alguma qualidade de vida perante a miséria que grassa país fora. A pobreza já não está apenas no terceiro mundo. É nossa vizinha, mora já na porta ao lado.

E de repente sinto o martelar das palavras na minha cabeça:

- à noite os cadáveres ainda são mais pestilentos. O calor da lua fá-los libertar o cheiro nauseabundo da vida perdida. Porque um cadáver é um corpo exaurido de ar. Exaurido de mar. E é no silêncio que a morte grita mais alto.

Filha, tremo só de pensar que poderá haver algum dia em que não teremos leite para te dar. É egoísmo da minha parte? Talvez, mas se me custa carregar os fantasmas que não conheço, sei que não terei forças para dizer não. E nessa altura, estarei perdido.

Amo-te!

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