E porque é lento, não tem direito a amar*

Ridículo. O Homem-lento não tem direito ao amor.

Não vê a sordidez escandalosa e obscena que é o homem-de-uma-perna-só desejar o corpo saudável, pleno de vida, de uma mulher jovem? Que lhe passará pela cabeça? Terá mesmo acreditado que ela o amaria? Que ela substituiria a paixão que sentia, por afeto e admiração?
Que era digno de sentir a pele macia das suas coxas nas mãos velhas, calosas e gastas?
Que poderia ser dono da suavidade de seda da pele dela?
Exaltava-o imaginar ser merecedor de uma massagem apaixonada.
Beijaria os seus olhos, beberia as suas lágrimas sofregamente: sim, meu amor, não chores, estou aqui para ti, não te deixarei, não te abandonarei nunca, acompanhar-te-ei sempre, desde que me prometas amor eterno, afinal já não falta muito, a eternidade para mim são apenas uns anos, sim meu amor, fica comigo, beija-me e ama-me, venera-me até ao fim, deixa tudo, vá, mesmo que não deixes, associa-me à tua vida, inclui-me na tua lista de afetos, só ele e eu, ninguém mais, porque aguento ser o outro, mas não posso aceitar ser o outro do outro, oh meu amor, por favor, salva-me!
Pensa ele que pode desejar e escapar? Achará mesmo que ainda lhe cabe essa decisão?
A mulher quer mais do que alguma vez o homem-lento lhe poderá dar. O que tem para lhe oferecer não oculta a sua incompletude. A sua deficiência. Que ela vê e por simpatia finge não dar importância.
O homem-lento é um homem incompleto.
Mas se ela não escarnece, não tenha ilusões, o homem-lento.
Porque será como o filho da manhã a querer ser Deus.
Oh, meu querido amigo, gosto de ti, sim, mas não te desejo, quero apenas ser tua enfermeira, tua curandeira, tua amiga, tua irmã, mas não quero ser tua mulher, não quero que seja o meu homem, afinal, homens há muito e eu tenho o meu e terei todos aqueles que eu quiser e às vezes eu quero, aliás, quero e não quero, por vezes é confuso, mas tu não, porque és um homem incompleto, meio homem, é certo que colecionas imagens, que cristalizas conceitos, que congelas pessoas, oh, mas não quero sentir em mim essa tua fealdade de velho, essas tuas rugas, sim, porque o que eu quero é a beleza de juventude, a urgência do dia de sol, vai, vai e leva a chuva, o outono é triste e eu não quero ser triste.
O homem-lento é lento, mas não é tão lento.
Pega na sua prótese, segura com força a bengala, engole as lágrimas, vira-se e fecha-se no seu apartamento a cheirar a mofo. Será assim até morrer!

* A partir da leitura do Homem lento de JM Coetzee

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