Fala Elisabeth Costello*

Paira no ar um cheiro a dor. Escrevo-te estas linhas para que não te esqueças. Porque um sorriso faz-te esquecer e perdoar com demasiada facilidade. E o perdão é para ser concedido devagar, com merecimento e apenas podes legar às memórias mortas aquilo que já não te queima. E hoje cheira a dor e é assim que te deves manter. Não te podes deixar levar pelo sorriso fácil, espontâneo e estridente. Não te deixes contaminar pela sua alegria, que te engana; pelo seu olhar, que te faz perder a angústia que te mantém inteiro, consciente, racional, integral e íntegro. Talvez ela  não o faça propositadamente, não será genial o suficiente. Contudo, faz-te navegar num vaivém constante entre um estádio e outro e nesta arte de marear sentes-te nauseado. Vomita-a da tua boa.**
Recorda-a como ela é para ti: a imagem da deusa que não queres seguir. A Dor.
Quando encarares o seu olhar sorridente, quando a olhares inteira, nota que ela sobe a bainha para te torturar com a suavidade lívida e estonteante da sua coxa. Apercebe-te que ela te quer assim: pela metade. Ela não te quer inteiro, não te deseja, mas ainda assim não te quer longe. O apelo da tua história é demasiado forte. Sabe que tens demasiadas histórias para contar. E já vai sentindo necessidade da tua adoração. Por isso não te deixa e não deixa que a deixes. E sabe bem como garantir que fiques. Conhece as tuas fraquezas e como balançar o desejo com a ausência.
Mas não podes permanecer prisioneiro de um feitiço que te destrói. Ainda não aprendeste a quebrar as amarras, mas no seu olhar estonteante já não és tu.
Diriam, se me ouvissem, que ela é egoísta. Nada mais falso. És a encarnação de um desejo discreto e secreto. És proibido, porque no cheiro a bálsamo que te envolve ela se sente mulher por completo, autoritária, sublime. 
Sei que não resistes à sua voz, ao seu timbre, à sua pronúncia. Levam-te aos cantos mais recônditos da tua alma, eu sei. São as vozes do passado, aquelas que julgavas mortas. Mas Deus não está a brincar contigo, ainda que disso tenhas a certeza. 

* Ainda sob influência de JM Coetzee, o que é evidente porque Costello é o seu alter-ego literário.^
** "Porque não és quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca", Apocalipse (ou Livro da Revelação).

Comentários

Mensagens populares deste blogue

ELOGIO DA LOUCURA*

Ama porque é lento