True light ou uma tentativa de contar histórias, quando nada se tem para contar.


No negro silêncio da noite, ele não viu o sorriso que lhe incendiou o rosto.
De resto, não viu nada.
Sentia o calor confortante da sua cabeça encostada ao peito. Ouvia o gemido baixo, lento, quase como um cântico. A Missa de Mozart.  Um choro sufocado por uma alegria radiante. Mas não lhe viu o sorriso. Perdeu o mar que derramava dos seus olhos. E se o soubesse, anular-se-ia irremediavelmente.
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Ela teve a certeza de que a sua semente havia ficado dentro de si. Que desta vez não havia erro. Ali, naquela noite, tinha sido dado início ao lento processo de germinação de uma nova vida, que não sendo um ou outro, era ambos e, no entanto, muito maior do que qualquer um deles poderia alguma vez ser.

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Ele nega, mas gosta de folhear a tarde de outono, página a página, vendo as folhas deslizarem suavemente diante da sua janela. Gosta do amarelo torrado com que lhe tingem o olhar e sonha com o verde com que se cobriram numa manhã de primavera, quando iluminados pela verdadeira luz.
Pensa:
- Oh, querida, se soubesses, se apenas adivinhasses o que tenho para te oferecer. O calor que guardo nos meus braços para ti!
Mas há sonhos que apenas devem ser sonhados. Sabe que a realidade é a sua própria criação e que nela não há espaço para qualquer intervenção sua.
Não há anjos que lhe apaguem as memórias sonhadas.

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A vida pulsava dentro de si e ela sabia-o. Mas as escolhas que teria de fazer eram demasiado para o pouco que podia abraçar. Não tinha regaço que lhe permitisse acolher tamanha dádiva. A vida por vezes é demasiado e não há abraço que a consiga recolher.
Desnorteada, temia a separação, mas temia ainda mais a possibilidade desta reunião absoluta.
- Porque me fazes isto? Porque me fizeste tua se não és capaz de abandonar a tua história? Quero ficar assim, abraçada a ti, eternamente. Mas se as tuas memórias te prendem com amarras demasiado fortes então abandona-me. Desiste de mim.

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- Querida, há olhos e olhos. As azeitonas são o meu alimento. Engulo-as devagar e não as perderei jamais. Ah, sim, como gosto da luz! E não te quero ver chorar, porque não se chora ao sul, ante a planície tingida de verde. Mas o azul do mar é a minha cor e é de azeitonas que me alimento. Insisto, é de azeitonas que me alimento. Senão, morro. E quantas vezes penso em sul, quando o sol é que me aquece.
- O homem que vive no meu espelho é sempre um estranho. Já foi louro. Já foi jovem e idealista. Já foi magro. Já foi bonito. Hoje, é apenas um estranho que se alimenta de azeitonas. Mas não lhas posso negar. Nunca!

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- Queres que regresse aos teus braços? Mas eles nunca foram meus. Este peito que sinto e toco, este calor que me aquece, este doce timbrar ritmado que oiço não é meu jamais. Para onde queres que regresse, então?
- Porque insistes em me amar, quando o amor não te pertence?
Pensa que quer jantar com o homem que a espera. Porque tem fome e quer sentir-se amada. Gosta que não lhe adivinhem os pensamentos, porque os quer secretos, íntimos. E ele adivinha demasiado.  Mas é difícil abandoná-lo, porque teme que seja para sempre. E sempre é tanto tempo.
Levanta-se e nesse ato simples, sente a eternidade fugir-lhe entre os dedos. Dói-lhe, como nunca antes aconteceu. Sabe que há regressos impossíveis. Diz-lhe:
- Saio para jantar, porque o amor é para ser cozinhado e eu sei que não posso fazê-lo contigo. Saio, para jantar, porque tenho uma fome antiga. Saio para jantar para me abandonar e para te abandonar. E desta vez, vou comer como nunca comi antes, vou comer como se fosse uma náufraga de anos. Vou comer, porque lá sei que encontrarei o conforto que não me podes dar. E, para que saibas, não te digo nada quando estou atolada contigo porque não te quero apenas quando não podes fugir. Sabe-lo demasiado bem. Saio para jantar com ele, mas sairia com outro qualquer. Aliás, abandono-te já e vou com um outro, para chegar a ele. Mas contigo não posso ficar.

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- E de azeitonas é que me alimento. Por isso, vai jantar e não me leves. Leva este. Faz dele o que quiseres. Leva-os. Leva todos. Mas eu fico. Sabes que sempre fico. Já parti demasiadas vezes e as viagens nunca trouxeram o alimento que preciso.
Di-lo e já chora. Porque sabe que há um mundo para reencontros possíveis. Porque sabe que se levantará como em todas as outras noites, lavar-se-á, olhará para o estranho que sempre encontra no espelho e deixar-lhe-á um sorriso triste. Mas resistirá, como sempre. E chora com a tristeza dos mortos porque tinha tanto para lhe oferecer se ela se pudesse alimentar com o que ele come. Mas sabe que para ela não basta este mar que tem para lhe oferecer. Para ela, o mundo não chega, é demasiado pequeno. Ao vê-la sacudir a saia e responder à voz masculina adocicada pelas pitangas dos trópicos, para abandoná-lo, sente o chão fugir-lhe. Vê-a sair com o rio grande do Sul para encontrar o conforto de um outro ainda diferente.  Sabe que aquela noite será como as restantes. Ela demasiado longe, abandonada nos braços de outro. De outros. De tantos, mas não os dele.
Oh, se apenas pudessem ambos jantar azeitonas.

Ouvindo o Into my arms, de Nick Cave.

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